Memórias da guerra da Argélia e da ditadura militar brasileira: o trabalho histórico sofre pressão
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- 28 de mai.
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Atualizado: 11 de jun.

Por Ambre Rieugnié
Em uma época em que parte da sociedade civil se mobiliza para honrar o dever de memória, as extremas direitas tentam influenciar esse relato. Os trabalhos de memória sobre as violações cometidas durante a Guerra da Argélia e a ditadura militar brasileira servem, assim, como um escudo contra a propagação de discursos revisionistas.
Paralelamente à intensificação das pesquisas sobre violações dos direitos humanos, o campo acadêmico entra no radar de interesses políticos, como explica o senhor Odilon Caldeira Neto – historiador especialista em extrema direita e coordenador do Observatório da Extrema Direita: “Estamos, portanto, falando de um campo de pesquisa que também se ‘inflacionou’: houve um boom — um boom de qualidade, um boom de quantidade, mas também um boom de interesses políticos. Tanto de interesses políticos na interpretação dos fenômenos, de interesses políticos visando uma eventual silenciamento, mas também de interesses políticos visando uma forma de ‘sanitização’ do fenômeno.” Se essas pressões não são novas, foram, no entanto, exacerbadas pelo contexto de pesquisa dos Estados Unidos, que teria ampliado “essa tendência à politização e aos impactos políticos sobre esse campo de pesquisa.”
Enquanto a extrema direita ganha terreno na cena política mundial, este artigo se debruça sobre dois contextos nacionais à primeira vista distantes — a França e o Brasil — para analisar como as extremas direitas mobilizam aí a memória das violências de Estado do passado, da guerra da Argélia à ditadura militar. Como esses relatos memoriais são instrumentalizados com fins ideológicos? E quais tensões essa reescrita do passado impõe ao trabalho das historiadoras e historiadores?
Os resultados eleitorais em todos os níveis — sejam as eleições europeias, argentinas ou ainda as eleições municipais no Brasil em outubro de 2024 — testemunham um avanço fulgurante da extrema direita. As forças conservadoras afirmam estar engajadas em um combate cultural contra uma corrente de ideias progressista e perversa. A senhora Maud Chirio, historiadora especialista da ditadura militar brasileira e fundadora da Rede Europeia pela Democracia no Brasil, evoca uma situação que ultrapassa o campo das ideias: “É o que se chama de polarização das sociedades que em geral acompanha a extrema direita. Podemos falar de hegemonia cultural. Em todo caso, há um combate cultural sobre normas morais, sobre a aceitabilidade das coisas e [esse combate] existe também na França.” Por essa tentativa de imposição de suas representações e valores, o debate democrático é fragilizado em um cenário político onde “não há mais adversários, há inimigos porque eles defendem valores que são considerados como valores inaceitáveis.”
Quando a ciência se debruça, então, sobre violações dos direitos humanos de ambos os lados do Atlântico, ela remexe um passado recente silenciado pelos responsáveis e abala o relato memorial da extrema direita. A história, particularmente em torno de eventos traumáticos, é “uma ciência que pode ser perigosa na medida em que vai destruir certo número de bastiões memoriais. E aí, um dia, um historiador vai dizer — Bem, não foi assim” — aponta o senhor Emmanuel Droit, professor de história contemporânea no Sciences Po Strasbourg.
As torturas e crimes perpetrados durante a Guerra da Argélia e a ditadura militar brasileira são, respectivamente, casos recentes de violação dos direitos humanos por agentes do Estado. Embora aparentemente distantes, os dois períodos compartilham um ponto em comum, nos diz o senhor Droit: “é que se trata do que chamamos de passados traumáticos. São passados dolorosos porque houve recurso a formas de violência excessiva, paroxística. O direito de guerra não foi respeitado de um lado. O Estado de direito foi violado do outro.” Aqui como lá, essas épocas tumultuadas recebem, no entanto, uma atenção especial no discurso da extrema direita, levando a questionar a proximidade das franjas ultraconservadoras com esses períodos.
No caso francês, a figura emblemática da Frente Nacional — atualmente renomeada Rassemblement National — Jean-Marie Le Pen, ilustra esses entrelaçamentos. Na dinâmica de boom memorial do final do século XX, o cofundador da Frente Nacional é interrogado a respeito de suas ações dentro do Primeiro Regimento Estrangeiro de Paraquedistas durante a Guerra da Argélia. Seu envolvimento com as torturas é revelado ao grande público pela jornalista Florence Beaugé durante uma investigação para o jornal Le Monde, marcando assim um exemplo marcante dos vínculos entre a extrema direita francesa e as atrocidades cometidas durante a Guerra da Argélia.
No Cone Sul, os vínculos entre a extrema direita brasileira e as ações da ditadura militar devem ser compreendidos num contexto mais amplo de herança política sul-americana. A fundadora da Rede Europeia pela Democracia no Brasil nos lembra que: “Em todo lugar onde há extremas direitas que se afirmam no cenário político, [há] uma parte da cena pública que permaneceu nostálgica da ditadura ou que nunca aceitou os processos de verdade e justiça implementados por governos centristas ou de esquerda. Esses grupos investem na extrema direita.”
Dada a sensibilidade dessas memórias e os estreitos vínculos que mantêm com os movimentos de extrema direita, elas são objeto de uma verdadeira contra-ofensiva visando retomar seu controle. A memória coletiva torna-se assim uma questão estratégica: como escreve o historiador Odilon Caldeira Neto na revista Antítese, trata-se de “um processo permanente” que permite “forjar ou legitimar características de unidade para certos grupos, a fim de justificar suas atitudes ou suas reivindicações diversas.” Nas mãos da extrema direita, essas representações do passado transformam-se então em alavancas políticas.
A cada contexto nacional, sua instrumentalização.
No contexto geral das guerras culturais, ponto central da estratégia das forças conservadoras, é essencial não perder de vista as especificidades de cada agenda nacional e de cada contexto histórico.
A guerra colonial marcada pela derrota francesa continua sendo um tema delicado no imaginário coletivo. O Rassemblement National, que tem ligações históricas com os períodos sombrios da colaboração de Vichy, adota uma retórica que busca justificar os atos de tortura e as atrocidades cometidas durante a Guerra da Argélia, colocando-os sob a ótica da luta contra o terrorismo. Progressivamente, o discurso político se orienta para uma representação do povo argelino percebido como perigoso e extremista. Essa deriva se opera ao longo do tempo, colocando no centro dos debates a questão da imigração. Estabelece-se assim um paralelo entre a Guerra da Argélia e a guerra cultural contemporânea conduzida pela extrema direita contra a imigração muçulmana. O partido da direita identitária se posiciona atualmente como defensor do patriotismo nacional, adotando uma abordagem pragmática onde os fins justificam os meios. Nesse contexto, a ação antiterrorista é invocada para legitimar práticas como a tortura. A retórica dessa direita radical concentra-se na questão da imigração e da ameaça islamista, clamando por uma certa moderação nos debates públicos, mas atualizando o debate sobre o respeito aos direitos humanos.
É na continuidade das relações diplomáticas franco-argelinas — marcadas pela memória da descolonização — que Jordan Bardella, presidente do RN, afirma em fevereiro de 2025: “É preciso ousar o braço de ferro diplomático. E agora, se o governo for coerente, é preciso garantir que nenhum visto mais seja concedido a um nacional argelino enquanto a Argélia se recusar a receber de volta seus indesejáveis e seus cidadãos estrangeiros, notadamente os clandestinos.” No entanto, como nos lembra Maud Chirio: “A extrema direita tal como está atualmente é Le Pen e Bardella. Não são figuras que vencem por ruptura. É um partido que, há 10 anos, tem uma estratégia, ao contrário, de normalização, que quer ocupar o lugar da direita sendo considerado como o verdadeiro partido de direita.” Isso não permite um discurso mais polarizador, ao contrário de seu equivalente brasileiro.
Se os movimentos de extrema direita só começaram a ganhar força na França recentemente, o Brasil, por outro lado, é palco de uma verdadeira “cultura de adesão aos valores da extrema direita”, como nos aponta o Sr. Odilon Caldeira Neto. O legado político autoritário dos países do Cone Sul, após transições democráticas múltiplas e incompletas, deixa seus regimes atuais diante de uma fraca adesão ao Estado de Direito. A esse contexto político, somam-se as realidades sociais. “Há uma parte da população para quem há violência todos os dias”, lembra a Sra. Maud Chirio, para prosseguir depois: “A ideia de que devemos defender a democracia contra um passado violento não faz sentido, pois para eles, não há Estado de Direito atualmente.” Essas palavras ecoam o grau de aceitação da violência – simbólica ou física – dentro da sociedade. Nesse contexto, uma figura tão polarizadora quanto Jair Bolsonaro ultrapassa uma linha; ele não se contenta em justificar os crimes da ditadura, ele os reivindica abertamente: “Bolsonaro não diz que não foi tão grave, ele diz que sim, torturaram, não torturaram o suficiente, deviam ter matado.” Esse discurso violento é sintomático da visão bolsonarista sobre os direitos humanos. Em um Brasil onde a violência policial é maciça e “conecta o presente ao passado”, segundo as palavras da Sra. Maud Chirio, uma certa continuidade pode ser estabelecida entre o apoio incondicional ao regime ditatorial e o apoio atual às forças armadas, que continuam cometendo atrocidades contra as minorias vulneráveis.
Questionada sobre a continuidade da luta da extrema direita brasileira, a especialista na ditadura militar observa que: “A batalha é cultural, contra o que ele chama de comunistas, na verdade, todo o progressismo, os direitos das minorias e etc. Ele estabelece uma continuidade com a ditadura que lutava contra esses mesmos comunistas. Para ele, existe uma verdadeira tradição, e assim, quando ele defende a ação repressiva durante a ditadura, ele defende a sua própria ação.” Novamente, como no caso francês, a memória serve como alavanca política. Se, na França, a tendência é justificar com a visão de um perigo hoje representado pela imigração, o homólogo brasileiro se lança diretamente na continuidade da luta contra a ameaça comunista mencionada pela junta. Duas estratégias, um mesmo objetivo: reescrever o passado para melhor orientar o presente.
A isso, soma-se outro fator de enfraquecimento dessas memórias traumáticas: as leis de anistia. Considerado um pacto social, o caminho da anistia foi privilegiado tanto na França quanto no Brasil, jogando para debaixo do tapete as quimeras do passado. Esse esquecimento impede um retorno crítico aos mecanismos políticos em ação. O Sr. Odilon Caldeira Neto se expressa a esse respeito, ressaltando: “Assim, em grande medida, a anistia, o silêncio, o esquecimento e as ideias de conciliação — que são amplamente ideias de pacificação — representam problemas para que a história, e mais ainda as políticas de memória, consigam compreender de maneira crítica a pegada, ou seja, a imensa diversidade do problema do autoritarismo, especialmente na sociedade brasileira.” Assim, a ausência de condenação, o acesso restrito aos arquivos e a falta de reflexão crítica sobre os mecanismos do passado deixaram um vazio. Um vazio que a extrema direita tenta agora ocupar no espaço público.
Imposição de um relato histórico: conflitos e consequências para a história
Questionado sobre a produção de um relato histórico pela extrema direita, o Sr. Emmanuel Droit se expressa: “É uma espécie de batalha cultural ou ideológica. É uma disputa para ver quem vai impor uma forma de metarrelato dominante ou, pelo menos, quem vai tentar fazer ouvir um discurso que às vezes está nas antípodas do discurso oficial, que é considerado parte do sistema. Então, por trás disso, há lógicas conspiracionistas.” A extrema direita se apropria de um vácuo memorial, um espaço no debate público para inserir um relato alinhado com seu projeto político. Um fenômeno que merece ser analisado à luz das estratégias eleitorais desses movimentos.
Na França — conforme a estratégia de desdiabolização do RN — a extrema direita tenta apagar as fronteiras com a direita tradicional, posicionando-se como um ator legítimo no debate, ao mesmo tempo em que trabalha para desacreditar os discursos contrários. Quando o jornalista Jean Michel Aphatie se expressa no matinal da RTL, em 25 de fevereiro passado, comparando o horror dos massacres nazistas com os da colonização, ele provoca uma reação em cadeia nos círculos conservadores. Entre eles, alguns meios de comunicação do grupo Bolloré demonstram uma sensibilidade acentuada para temas ligados às lutas progressistas. Em reação à polêmica em torno da matinal da RTL, o jornalista Vincent Hervouet se expressa, indignado que o Sr. Aphatie “não entende nada de história.” Tais polêmicas “aguçam ainda mais a sensibilidade para o que podemos chamar de papel social do historiador. Ou seja, quando a verdade histórica é atacada — pois, afinal, Jean-Michel Aphatie não fez nada além de dizer a verdade histórica.” reage o Sr. Emmanuel Droit. Uma super-sensibilidade em relação às questões de memória é observada, chegando até a censurar falas historicamente justas. Além das imposições lançadas de fora do mundo científico, também há “universitários entrando na batalha cultural”, segundo a Sra. Chirio. A extrema direita, com o apoio de alguns meios de comunicação e desses acadêmicos, rotula como “islamo-esquerdistas” os relatos divergentes — taxando assim a oposição de traição para descredibilizá-la.
No Brasil, o campo bolsonarista é conhecido por suas falas polarizadoras e o uso massivo de fake news. Um estudo do IDEIA Big Data estima que 98,21% dos eleitores de Bolsonaro foram expostos a fake news e 89,77% deles acreditaram nelas. Em um contexto de pressões exacerbadas no Brasil, esses números imensos fazem sentido, acompanhados das acusações de “comunismo” contra o corpo científico. Um dos alvos prioritários da extrema direita: o corpo docente, como mencionado pela Sra. Chirio — “Aliás, a primeira medida, ou a primeira coisa que Bolsonaro diz depois de assumir, é chamar os pais a fazer com que seus filhos filmem os professores comunistas, testemunhem, denunciem.” Para a pesquisadora, é particularmente “marcante que o corpo docente seja realmente considerado, primeiro, como um dos inimigos a ser abatido, em vez de um espaço a ser infiltrado.” Se as investidas contra o corpo acadêmico em geral se intensificam, elas não se limitam a um descrédito público. O movimento bolsonarista, que adota uma linha dura do neoliberalismo, exerce uma das principais pressões por meio do orçamento, segundo a fundadora da Rede Europeia pela Democracia no Brasil: “Mas tenho mais a impressão de que é pela ortodoxia orçamentária e pelo estrangulamento financeiro que este poder tem tentado diminuir a audiência de seus adversários.” No caso brasileiro, os ataques são mais diretos e refletem estratégias eleitorais de curto prazo. A proximidade dos círculos militares com a extrema direita adiciona uma particularidade extra às pressões enfrentadas: “um esforço de alguns setores — tanto dos setores das Forças Armadas quanto de grupos de extrema direita brasileiros associados à ideia de militarismo — para impor ou tornar impossíveis abordagens críticas sobre a memória do papel dos militares na história política republicana brasileira”, como explica o Sr. Odilon Caldeira Neto. Os legados políticos e as estratégias das extremas direitas moldam a batalha cultural travada em torno da memória da guerra da Argélia e da ditadura militar. Contudo, diante dessas tentativas revisionistas, os historiadores enfrentam as mesmas dificuldades.
O trabalho histórico, um trabalho com vocação científica, se vê diante de imperativos deontológicos quando a cientificidade em si é atacada. Nesse ponto, o Sr. Emmanuel Droit afirma uma posição clara: “Quando, por trás disso, você sofre as fúrias, seja nas redes sociais, seja nos canais, de alguns militantes revisionistas, é preciso enfrentar isso e continuar defendendo essas posições, porque é quase um dever moral, na verdade, defender a verdade.” Em um contexto exacerbado de polarização, onde as teorias revisionistas se multiplicam, os historiadores enfrentam uma quantidade crescente de desafios. O dever moral de se opor ao revisionismo soma-se à tarefa de produzir conhecimento em um contexto de pressão ideológica. Esse ângulo questiona, assim, a carga psicológica que se adiciona ao trabalho de pesquisa, como testemunha a Sra. Chirio: “Percebo que muitas pessoas, em determinados momentos, param por alguns anos, trabalham em outra coisa. [...] É exaustivo e também levanta várias questões éticas. Levanta questões científicas, levanta questões etimológicas sobre até que ponto mantemos esse horizonte de objetividade quando estamos tão pessoal e emocionalmente envolvidos em um combate político. São questões que são pesadas para carregar.” Embora esse fenômeno não seja novo, considerando a sensibilidade das questões, a intensificação das pressões em torno dos temas da Guerra da Argélia e da ditadura militar reflete a evolução dos movimentos de extrema direita, como confirma Odilon Caldeira Neto: “Portanto, sim, existe uma pressão, e eu acho que ela está ligada às particularidades do objeto de estudo, mas nos últimos anos essas tensões se tornaram ainda mais fortes.”
O trabalho de pesquisa se complica em um contexto de polarização política e estagnação em relação à abertura dos arquivos. A questão da posição dos historiadores frente aos discursos revisionistas perniciosos está, hoje, na ordem do dia, uma preocupação que o Sr. Emmanuel Droit expressa de forma direta: “E a grande preocupação que eu tenho é que, em nome da liberdade de expressão, dentro de uma lógica um pouco libertária, possamos dizer qualquer coisa e todas as opiniões sejam válidas.” — antes de afirmar: “Há um nivelamento das posições e dos valores que é extremamente perigoso.”

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