Entre o fuzil e o aço, o sangue
- memoriasdaditadura
- 11 de jun.
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Por João Vitor Braga e Valentina Rocha
O choro de uma menina de 12 ou 13 anos, sentada no chão perto de uma janela de frente para a companhia, porque seu pai estava na usina, é uma das imagens gravadas na memória de Maria Agda Guedes Parés, esposa do jornalista e sindicalista Ernesto Germano Parés. Ela se recorda do episódio que ficou conhecido como o “Massacre de Volta Redonda”. No fim daquela quarta-feira, 9 de novembro de 1988, três metalúrgicos da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) foram assassinados pelo Exército dentro das dependências da indústria, durante uma paralisação. Maria Agda é uma das testemunhas ouvidas pelo Centro de Memória Operária Digitalizada Rubem Machado, projeto coordenado pelo sindicalista e historiador Erasmo Quirici.
Naquele dia, o movimento sindical dos operários da CSN se organizou dentro da companhia para reivindicar aumento salarial com base no índice de inflação da época, jornada de trabalho de 40 horas semanais e a readmissão dos trabalhadores demitidos em 1987 por participação em uma mobilização. De acordo com os relatos da época, foram pelo menos mil metalúrgicos reunidos nas dependências da companhia.
“O clima já era terrível. Eu estava em um consultório, na Vila, com o meu filho mais velho, Jerônimo, e, por volta das dezoito horas, começamos a ouvir os tiros. Foi uma correria. Os soldados marchavam pelo centro comercial e assustavam as pessoas, que corriam para as ruas laterais, fugindo”, conta Maria.
Daquele momento em diante, o centro da cidade virou um verdadeiro campo de batalha, e a usina se transformou no palco principal. Entre gritos de que a greve deveria continuar, os trabalhadores tentavam se proteger das ofensivas militares, que avançavam cada vez mais para dentro da companhia.
A ação culminou na morte dos metalúrgicos William Fernandes Leite, de 22 anos, e Valmir Freitas Monteiro, de 27 anos, ambos assassinados com um tiro de metralhadora no peito, e Carlos Augusto Barroso, de 19 anos, morto por esmagamento craniano após sofrer pancadas na cabeça, fortes o suficiente para deixar seu cérebro no chão.
A greve só parou após intensas negociações entre as partes, pressão popular regional e nacional, apoio de líderes da igreja e uma curiosa confusão entre Ulysses Riedel, advogado do sindicato que tinha um escritório em Brasília - a quem Marcelo pediu que Ernesto solicitasse ajuda -, e Ulysses Guimarães, então Presidente da Assembleia Constituinte - a quem o líder do sindicato ligou em meio a confusão. Apesar do engano, as negociações funcionaram e, no dia seguinte, o Exército deixou a fábrica.
O Bispo Vermelho
Os acordos contaram com a presença de Dom Waldyr Calheiros, bispo da Diocese de Barra do Piraí–Volta Redonda, no estado do Rio de Janeiro, que tinha forte atuação em defesa das minorias.
“Uma cena que jamais vou esquecer é a da missa na praça, rezada por Dom Waldyr em memória das vítimas. Lembro com todos os detalhes dos trabalhadores levando uma enorme cruz de madeira, ao som compassado de tambores. A cruz foi sendo lentamente erguida e a camisa de um dos operários, ainda suja de sangue, ficou bem visível. E ouvi as palavras de Dom Waldyr, falando da dignidade do ser humano e dos direitos dos trabalhadores, e depois o povo todo gritando ‘Dom Waldyr é companheiro’ e 'na usina ou na rua, a greve continua”, conta.
Autor do livro “Waldyr Calheiros, Dom e Profecia: entre o Báculo, Estrelas, o Aço e a Botina”, que aborda a trajetória do “bispo vermelho”, como a oposição se referia ao religioso, o historiador e professor Hugo Leonardo Pereira Borba, conta que o bispo representa um verdadeiro símbolo de ruptura dentro da Igreja e da sociedade local.
“Dom Waldyr chegou à cidade em 1966, em pleno regime militar, e logo se distanciou da postura de conivência que marcava parte do clero com o autoritarismo da época. Influenciado pelas ideias do Concílio Vaticano II, do qual participou diretamente em duas sessões, Dom Waldyr abraçou a “Igreja dos Pobres”, tornando-se um pastor comprometido com a justiça social e com a defesa dos direitos humanos”, relata.
O bispo foi responsável por relatar o primeiro e único caso de condenação de militares durante o regime. Dom Waldyr denunciou a tortura de 15 soldados e o assassinato de quatro deles dentro do 1º BIB (Batalhão de Infantaria Blindada) de Barra Mansa, em 1972.
"A batalha dos operários e as intenções de Dom Waldyr naquela época, ainda inspiram nossas lutas e desafios até hoje" , diz José Maria da Silva, o Zezinho, fundador do Movimento pela Ética na Política (MEP), de Volta Redonda, e um dos principais interlocutores de Dom Waldyr ao longo de sua jornada à frente da Cúria Diocesana local.
Comissão Municipal da Verdade
Ainda hoje, a cidade conta com intervenções artísticas e políticas que eternizam o capítulo sombrio, mas necessário de ser lido para não ser esquecido. O presidente da Comissão Municipal da Verdade Dom Waldyr Calheiros, Alex Martins, lembra um dos símbolos da repressão na cidade, o monumento Nove de Novembro, idealizado por Oscar Niemeyer a pedido do Sindicato dos Metalúrgicos de Volta Redonda.
“O monumento de Niemeyer é uma denúncia em concreto. Ele quis retratar, com brutalidade estética, a violência do Estado. A lança atravessando o corpo central é um símbolo do coração ferido de um povo trabalhador massacrado”, pontua Martins.
Inaugurado em 1º de maio de 1989, a intervenção artística foi erguida com recursos arrecadados entre os próprios metalúrgicos e construída de forma coletiva, com trabalho voluntário. No entanto, menos de 24 horas após sua inauguração, foi alvo de um atentado terrorista que o destruiu com explosivos de uso militar.
“O atentado ao monumento foi a segunda morte dos operários. A primeira foi a física, pelas balas do Exército; a segunda foi simbólica, na tentativa de destruir sua memória. Mas o povo reconstruiu”, afirmou Alex Martins. Com o apoio da população e sob nova concepção do arquiteto, o monumento foi reconstruído pouco mais de um mês depois, mantendo vestígios da explosão como marca da violência sofrida.
“Não se trata apenas de honrar os mortos, mas de garantir que jamais se apague da história brasileira o que foi a barbárie de 1988. O Estado, ao usar tropas militares contra operários em greve, revelou o quanto o autoritarismo ainda permanecia vivo nas estruturas de poder mesmo após a redemocratização”, declarou Martins.
O relatório da Comissão Municipal da Verdade foi claro ao apontar responsabilidades institucionais na repressão violenta aos grevistas e ao denunciar a impunidade dos envolvidos no planejamento e execução do massacre. A conclusão destaca também a morte do soldado do Exército Charles Fabiano da Silva, apontado como testemunha chave no inquérito da explosão do monumento. Dias antes de prestar depoimento, ele foi brutalmente assassinado em “circunstâncias nebulosas”. O caso foi encerrado oficialmente como crime comum praticado por traficantes, embora diversas contradições e omissões nas investigações levantem suspeitas até hoje.
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