Memória em disputa: Exército resiste à criação de memorial no antigo DOI-Codi da Rua Barão de Mesquita
- memoriasdaditadura
- 23 de jul.
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Por Brenda Gusmão
“Olha o jacaré!” gritou um menino nos fundos do pátio do quartel da Polícia do Exército, na Tijuca, Zona Norte do Rio de Janeiro. Foi repreendido, logo em seguida, por um oficial: “Saí daí, garoto! Não pode entrar aí não”. Era uma manhã de domingo, em 1970. De uma cela no segundo andar do Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna do Rio de Janeiro, o DOI-Codi/RJ, ouvia-se música, vozes soltas e risos, crianças correndo. A lembrança é da psicóloga e historiadora Cecília Coimbra, ex-militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB), que esteve presa e foi brutalmente torturada no local entre agosto e novembro daquele ano. Trazido do Rio Araguaia, na Região Amazônica, o filhote de jacaré era um dos instrumentos utilizados nas sessões de tortura.
Quem passa pela Rua Barão de Mesquita, 425, na Tijuca, dificilmente imagina que por trás dos muros do 1º Batalhão de Polícia do Exército funcionou, durante os anos mais duros da ditadura militar, o principal centro de tortura e repressão política do estado: o DOI-Codi/RJ. Não há placas, marcos ou sinalizações.
Quase cinco décadas após o encerramento das atividades, em 1979, o prédio permanece sob controle do Exército. A resistência da instituição em permitir o acesso ao espaço tem impedido o avanço do processo de tombamento e a criação de um centro de memória no local, reivindicação antiga de ex-presos políticos, familiares de vítimas e organizações da sociedade civil.
A única memória visível é o busto do ex-deputado e engenheiro Rubens Paiva, instalado na Praça Lamartine Babo, em frente ao quartel onde ele foi preso, torturado, assassinado e desaparecido em 1971. A estátua foi inaugurada em 2014 pelo Sindicato dos Engenheiros no Estado do Rio de Janeiro (Senge-RJ) e pela Federação Interestadual dos Sindicatos de Engenheiros (Fisenge). Com o lançamento do filme “Ainda Estou Aqui” (2024), que reconstrói a trajetória da família Paiva, o monumento voltou a ser ponto de encontro, homenagens e protestos que pedem por um memorial dedicado às vítimas e aos sobreviventes da repressão.
Uma longa batalha pelo reconhecimento histórico
Em janeiro de 2025, o Ministério Público Federal (MPF) recomendou ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) que priorizasse o tombamento do imóvel que abrigou o Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi), cujo processo tramita desde 2013. Na determinação, o MPF destacou a “demora injustificada” e cobrou o encerramento da fase de instrução ainda em 2025, além de propor o tombamento provisório e a criação de uma plataforma pública para o acompanhamento do caso.
Por meio de nota, o Iphan afirmou que o tombamento do espaço é uma das prioridades da atual gestão, mas ressaltou que a visita técnica necessária para dar andamento à análise ainda não foi autorizada pelo Exército. Um novo pedido foi formalizado em janeiro deste ano e uma reunião entre as instituições para tratar sobre o processo foi feita em fevereiro. A visita se encontra em fase de alinhamento e a equipe técnica do Iphan está finalizando os estudos históricos e arquitetônicos necessários para o tombamento. O órgão também destacou que, com a abertura do processo de tombamento, o edifício já passa a contar com a proteção em nível federal, o que garante temporariamente a preservação até a conclusão da análise.
Procurado pela reportagem, o Comando Militar do Leste, responsável pelo 1º Batalhão de Polícia do Exército, recusou se manifestar sobre o processo de tombamento do antigo DOI-Codi/RJ. Já o Exército Brasileiro, até o momento da publicação do texto, não retornou o contato.
A ausência do reconhecimento oficial pelas Forças Armadas e a dificuldade de acesso ao local alimentam o sentimento de apagamento e frustração entre aqueles que lutam pela preservação da memória. É o caso do jornalista, ex-preso político e sobrevivente Álvaro Caldas. Durante a ditadura militar, ele foi preso três vezes – em duas delas, sofreu brutais sessões de tortura no antigo DOI-Codi. Atuante na militância de esquerda, ele fez parte do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), organização que defendia a luta armada contra o regime.
– O espaço ainda estar sob tutela do Exército, sem nenhuma identificação do que ocorreu, dá uma sensação de que a luta que fizemos para tornar isso público, até agora, não conseguiu alcançar uma dimensão maior. É frustrante. As pessoas que moram na Tijuca não fazem a menor ideia de que lá dentro se matou gente, se torturou. Não sabem que isso foi feito descaradamente em um bairro de classe média urbana do Rio de Janeiro. Usaram um quartel. Em outros lugares, usaram delegacias de polícia, mas aqui, foi o 1º Batalhão de Polícia do Exército – declarou.
Aos 85 anos, Álvaro talvez seja o sobrevivente que mais retornou ao local onde funcionou o DOI-Codi/RJ. Além das prisões, o jornalista voltou ao endereço duas vezes como integrante da Comissão Estadual da Verdade (CEV-RJ), quando guiou uma das raras diligências no interior do Batalhão da PE, em 2013. Participou também de protestos recentes na Praça Lamartine Babo, em frente ao quartel, que pediam pelo tombamento do espaço. Ele é autor do clássico “Tirando o Capuz” (1981), um dos primeiros relatos publicados, ainda sob censura, sobre a militância e a repressão política sofrida à época.
– Voltar ao local onde você foi torturado não é algo simples. Sou jornalista, escritor, virei professor. Tenho um interesse muito grande pela memória deste tempo. Acredito que um dos meus deveres é relembrar esta história para que ela seja conhecida. Nós não podemos deixar que isso caia no esquecimento, no limbo, que daqui a pouco ninguém mais ouça falar disso. Na minha trajetória sempre tive a preocupação de vincular essa história e mostrar que isso é importante para a constituição da memória deste país. Acho que é um dever meu ir à fundo nessa história, trazê-la à tona, fazer com que todos percebam que a memória é importante – reiterou.
Desde o fim do regime, Cecília Coimbra tem se dedicado à militância em defesa da memória e da justiça. Em 1985, ela fundou o Grupo Tortura Nunca Mais, uma organização pioneira na luta por reparação às vítimas da ditadura e por políticas públicas de memória. Atuou também como professora e pesquisadora do Instituto de Psicologia (IPsi), na Universidade Federal Fluminense, com uma pesquisa voltada para os efeitos psíquicos da violência de Estado durante a ditadura. Para a psicóloga, transformar o antigo DOI-Codi do Rio em um espaço de memória é uma forma de romper com a herança autoritária ainda presente no cotidiano brasileiro.
– Lutamos há muitos anos para que aquele local seja um museu em memória da resistência. Essa é uma reivindicação anterior ao filme “Ainda estou aqui”, mas que ganhou uma nova oxigenação agora. É triste saber que, hoje, as celas servem de prisão para soldados. O prédio continua ali. A gente consegue ver nitidamente da Avenida Maracanã. E a herança maléfica da ditadura permanece no nosso cotidiano, os efeitos ainda estão vivos. É fundamental que todo o batalhão – que era aberto aos sábados, domingos e feriados para a comunidade – seja transformado em local de memória, não só aquele prédio. Os museus de memória são pedagógicos, a gente vê isso na Europa e em outros países da América Latina. Agora, inclusive, mais do que nunca – ressaltou.
O mundo de olho
A visita recente de uma comitiva da ONU ao Brasil, liderada pelo relator especial Bernard Duhaime, entre os dias 30 de março e 7 de abril, reacendeu o debate sobre as medidas de justiça de transição. Com o objetivo de avaliar as políticas de justiça, verdade e reparação tomadas após a redemocratização, o grupo participou de encontros com autoridades, vítimas e organizações civis, e visitou locais simbólicos da repressão em Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo. A agenda foi organizada pelo Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania.
A viagem ao Rio, inicialmente, previa uma diligência à sede do antigo Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), na rua da Relação, 40, bairro da Lapa, mas o pedido foi negado pelo governo do estado. Uma articulação entre os ministérios da Defesa, Relações Exteriores e Direitos Humanos permitiu que a comitiva visitasse o 1ºBPE e o prédio que abrigou o DOI-Codi/RJ.
Convidados a acompanhar a diligência, o arquiteto Felipe Nin, integrante do Coletivo Memória, Verdade e Justiça RJ, e o ex-preso político Newton Leão Duarte, que esteve encarcerado e foi torturado no local durante a ditadura, foram barrados na entrada com a justificativa de que seus nomes não haviam sido enviados com antecedência. Apesar de não terem participado diretamente, eles mantiveram contato com a comitiva por mensagens. Felipe enviou fotos, a planta e informações que subsidiaram a visita. Para o arquiteto, o veto reforça o apagamento histórico promovido pelo Exército e a dificuldade de avançar na política de memória.
– Os oficiais do Exército quiseram levar a comitiva da ONU para outro prédio do Batalhão. Ficamos em uma sala de espera, mas em contato pelo whatsapp passando fotos e informações para garantir que o pessoal da comitiva visitasse o espaço correto, e eles conseguiram. Sem contar com o depoimento e a colaboração dos próprios militares fica difícil compreender como esse espaço funcionava e compromete muito a delimitação do que está sendo tombado. A gente não pode pensar que o DOI-Codi era um órgão que funcionava sozinho. Ele era o local das prisões e torturas, mas o Batalhão como um todo teve essa função – relatou.
O arquiteto, que é sobrinho de Raul Amaro Nin Ferreira – estudante torturado no DOI-Codi/RJ e morto no Hospital Central do Exército em 1971 –, esteve presente na diligência realizada pela Comissão Nacional da Verdade ao local, em 2014. Segundo ele, diversos elementos arquitetônicos originais da época permanecem preservados: celas, grades, portas, janelas, um espelho falso e detalhes nas soleiras das portas mencionados por ex-presos políticos como parte do isolamento acústico. Embora duas solitárias tenham sido transformadas em um banheiro, ainda era possível reconhecê-las na planta, que se manteve semelhante à de 1970.
– O PIC é uma edificação muito simplória dentro do complexo arquitetônico do Batalhão, que tem a fachada histórica para a Rua Barão de Mesquita, um pátio e com outras instalações e um ginásio. Ainda hoje, o prédio que abrigou o DOI-Codi funciona como prisão, só que de oficiais. Então preserva, por exemplo, os mesmos elementos decorativos. Várias celas continuam sendo celas. Grades, portas e janelas, a planta de muitos lugares continua a mesma. Os militares fizeram algumas adaptações, mas não houve grandes alterações – completou.
No relatório preliminar, o relator Bernard Duhaime expressou preocupação com a falta de preservação e memorialização de espaços onde ocorreram graves violações de direitos humanos, incluindo o DOI-CODI no Rio de Janeiro. O relator observou que esses locais atualmente são administrados pela polícia ou pelas forças armadas, encontram-se em condições precárias ou são de propriedade privada. Duhaime ainda endossou as demandas de organizações que pedem a preservação dessas instalações e a transformação em centros de memória sob jurisdição civil.
A engrenagem da repressão no coração da Tijuca

O DOI-Codi da Barão de Mesquita é apenas um entre os 38 locais oficiais ou clandestinos utilizados para prisões, torturas e assassinatos no estado do Rio de Janeiro, segundo levantamento do Projeto República da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). O relatório final da Comissão Estadual da Verdade mostrou que 163 pessoas foram mortas ou desapareceram como vítimas da repressão no estado. Já a Comissão Nacional da Verdade (CNV) apontou que ao menos 53 dessas mortes ocorreram nas dependências do DOI-Codi carioca. Desse número, 33 corpos nunca foram encontrados, como o do jornalista Mário Alves, preso, torturado e desaparecido em 1970, e o do ex-deputado Rubens Paiva, em 1971.
A criação dos DOI-Codi, em 1970, foi uma resposta da ditadura militar à pressão de setores das Forças Armadas que consideravam lenta e ineficaz a estrutura que se tinha no final da década de 1960. Resultado da Operação Bandeirantes (Oban), realizada em São Paulo, um ano antes, com o financiamento de empresas como Ford, General Motors e o Grupo Ultra, o modelo unificava as ações de diferentes órgãos policiais e militares sob o comando em um mesmo espaço físico – da coleta de informações até interrogatórios e operações de repressão. Aos olhos dos militares, a operação teve “bons resultados” na repressão. Nos anos seguintes, o modelo foi institucionalizado e implantado nas diferentes regiões militares pelo país.
A partir de 1970, a sede carioca passou por reformas que visavam adaptar a arquitetura às práticas da repressão com metodologias “importadas” de experiências estrangeiras, como a Guerra da Argélia e os treinamentos oferecidos pela CIA na Escola das Américas, no Panamá. Uma nova entrada pela Avenida Maracanã foi construída para permitir a entrada discreta dos presos políticos, sem que estes tivessem que atravessar o batalhão. Solitárias, celas coletivas e espaços projetados para interrogatório e tortura foram implantados. Isolamento acústico, espelhos falsos e escutas reforçaram o aparato de controle.
Embora o Pelotão de Investigações Criminais (PIC) já funcionasse como prisão e instrumento de perseguição política antes da formalização do DOI-Codi, as reformas no local transformaram o 1º Batalhão de Polícia do Exército em engrenagem central da repressão no estado.
Moradora da Tijuca até os 23 anos, a historiadora e pesquisadora da Biblioteca Nacional Rafaella Bettamio foi uma das primeiras a investigar o DOI-Codi/RJ como espaço de repressão. A curiosidade nasceu da convivência com o local: nos anos 1990, ela frequentava as festas juninas promovidas no quartel, sem saber o que havia acontecido ali. A pesquisa iniciada na graduação, em 2005, resultou anos depois em uma dissertação e no livro “O DOI-Codi carioca: memória e cotidiano" (2014), que reconstrói a história do lugar a partir das memórias de ex-presos políticos.
Atualmente, Rafaella integra a equipe responsável pelo parecer histórico do processo de tombamento no Iphan, acredita que preservar o espaço é fundamental para que a memória da ditadura integre a história oficial do país. Para a pesquisadora, o tombamento não é o ponto final, mas um início necessário diante da permanência da violência do Estado na democracia.
– O menos importante é avaliar o que está lá, o que se manteve da época. Mesmo que estivesse em ruínas, o mais importante é que a gente tenha aquele espaço tombado e possa dizer: “aqui foi o DOI-Codi. Ele existiu. Pessoas morreram aqui, foram torturadas”. Precisamos desse ponta pé inicial para poder construir todo este pensamento, para que isso faça parte da história oficial do Brasil – enfatizou.
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