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Hospital Central do Exército guarda vínculos sombrios com a ditadura militar brasileira

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    memoriasdaditadura
  • 3 de jun.
  • 8 min de leitura

Atualizado: 9 de jun.

Entrada do Hospital Central do Exército: local foi usado para a prática de violência contra presos políticos durante a ditadura militar. Reprodução/ Clara Kasprzykowski
Entrada do Hospital Central do Exército: local foi usado para a prática de violência contra presos políticos durante a ditadura militar. Reprodução/ Clara Kasprzykowski

Por Clara Kasprzykowski & Gabriel Radicetti



O Hospital Central do Exército, principal unidade médica da força, serviu como um braço da repressão política no auge da ditadura militar (1964-1985). Depoimentos de vítimas, parentes e documentos da Comissão Nacional da Verdade (CNV) denunciaram pelo menos três casos de maus-tratos e complacência com a violência contra presos políticos praticados pelo estabelecimento. O episódio mais grave diz respeito ao assassinato, dentro do hospital, do militante Raul Amaro, com 27 anos.


"A função do hospital não era salvar vidas, mas administrar o sofrimento para prolongá-lo sob a aparência de legalidade", colocou Vera Vital Brasil, ex-presa política e psicóloga que coordenou, entre 2013 e 2015, o projeto Clínicas do Testemunho, oferecido pelo Ministério da Justiça para o acolhimento de vítimas do período ditatorial.


Repressão com estetoscópio 

O Rio de Janeiro foi um dos epicentros da repressão política durante a ditadura. DOI-CODI, DOPS e outros órgãos atuavam com brutalidade. Quando os presos atingiam condições físicas críticas, eram levados ao Hospital Central do Exército. Ali, a estrutura médica servia não para a recuperação plena, mas para para impedir que morressem sob custódia direta de seus algozes e prepará-los para novas sessões de tortura ou.


"O HCE era parte da engrenagem repressiva. Um braço do Estado usado para maquiar a dor sob pretexto de cuidado médico", afirmou Vera. "Era onde se lavavam as mãos e se perpetuava o horror."


"Quando os prisioneiros ficavam debilitados, eram mandados para o HCE para consertar um pouquinho e devolver para tortura", relatou o historiador e ex-preso político Paulo César Ribeiro, que esteve internado no hospital por cerca de um ano. Embora tenha recebido cuidados de alguns profissionais, ele lembrou que "a estrutura toda estava comprometida".


O caso Raul Amaro 

Entre os casos mais emblemáticos envolvendo o Hospital Central do Exército está o assassinato de Raul Amaro Nin Ferreira, engenheiro do Ministério da Indústria e Comércio e militante engajado na luta contra a ditadura, nas dependências do hospital.


"Ele era aquele irmão mais velho exemplar, muito ligado à família, com planos de estudar fora e noivo. E, mesmo assim, escolheu se posicionar diante da ditadura", contou seu sobrinho e membro do Coletivo Memória, Verdade e Justiça, Felipe Nin.


Membro da rede de apoio ao Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8), Raul e um casal de amigos voltavam de um bar de carro em 1º de agosto de 1971 quando foram parados por uma operação policial em Laranjeiras. Os agentes públicos encontraram mapas considerados suspeitos dentro do veículo e levaram os três para o Departamento de Ordem Política e Social (DOPS-GB).


As sessões de torturas, que se iniciaram já em sua primeira passagem pelo DOPS, se intensificaram após uma equipe do departamento, acompanhada de Raul, ter revistado seu apartamento em Santa Teresa. "Encontraram panfletos, transmissores de rádio e um mimeógrafo. Foi direto para o DOI-CODI, onde se reforçou a repressão", detalhou Felipe.


No dia 4, sob intensa violência, os policiais encaminharam Raul ao Hospital Central do Exército, onde as torturas, em tese, cessariam até que se recuperasse minimamente. Não foi o que aconteceu. "Ele passou por quatro interrogatórios, dois deles dentro do hospital. O último foi em 11 de agosto”, relatou Felipe.


Na tarde de 12 de agosto, a família de Raul recebeu um telefonema do diretor do HCE, general Rubens do Nascimento Paiva, anunciando a morte do jovem. Uma pesquisa minuciosa empreendida pela família a partir de documentos da inteligência oficial, relatos de ex-presos políticos e militares e pareceres médicos comprovou que Raul morreu durante uma sessão de tortura, dentro do HCE, no dia 11 de agosto.


"Minha avó entrou com um processo ainda na ditadura. E o mais impressionante: um soldado do DOI-CODI procurou a família para testemunhar. Ele viu o Raul ser torturado. ", afirmou Nin.

 

Em 1994, o Estado brasileiro foi oficialmente responsabilizado pela tortura e morte do estudante. A trajetória de Raul Amaro tornou-se símbolo da violência praticada e da persistência necessária para buscar justiça.

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Entre a ética e a repressão 

Diante da missão de cuidar e a sedução do poder ditatorial, o comportamento de médicos entre 1964 e 1985 foi diverso. Amílcar Lobo e Ricardo Fayad, profissionais atuante no 1º Batalhão de Polícia do Exército, na Zona Norte do Rio de Janeiro, são nomes conhecidos por participarem ativamente de sessões de tortura possibilitando que as vítimas permenecessem vivas para lembrar de suas cicatrizes. Outros profissionais se impuseram bravamente contra as arbitrariedades do período. Um deles foi Galeno da Penha Franco, diretor do Hospital Central do Exército de julho de 1966 a maio de 1971.


No livro “A Ditadura Escancarada”, o autor Elio Gaspari detalha a recusa de Galeno de receber, no HCE, o corpo já morto do estudante de medicina Chael Charles Schreier. Membro da organização guerrilheira VAR-Palmares, Chael foi preso em 23 de novembro na casa onde morava, em Lins de Vasconcelos, após troca de tiros com a polícia. Foi então encaminhado ao DOPS e, mais tarde, à Vila Militar. Em Deodoro, foi interrogado e morto no dia seguinte à prisão, sob responsabilidade do major de Cavalaria Ary Pereira de Carvalho, “figura ilustre das listas de torturadores”, nas palavras de Gaspari.


O plano dos militares era enviar o corpo ao HCE para dizer que morreu no hospital devido a complicações contraídas durante o tiroteio. O diretor Galeno, no entanto, se recusou a compactuar com o discurso falso, sem antes ter ordenado aos médicos do hospital a realização de uma autópsia. Assinada pelos médicos Oswaldo Caymmi Ferreira, Guilherme Achilles de Faria Mello e Rubens Pedro Macuco Janini, a necropsia registrou que 53 marcas de pancada lhe causaram hemorragia na cabeça e abdômen, além de dez costelas quebradas. O documento foi mais tarde publicado na revista Veja, sendo primordial para a contestação da versão oficial dos fatos por parte da sociedade civil.


Profissionais do hospital acolheram preso político 

O historiador e ex-preso político Paulo César Ribeiro, que ficou internado no HCE por cerca de um ano, de agosto de 1971 a janeiro de 1972, também relatou o cuidado da equipe médica. “Quando os prisioneiros ficavam debilitados, com uma saúde debilitada, eram mandados para o HCE para consertar um pouquinho e devolver para tortura. Dentro do hospital, fiz muito repouso e me alimentei. Não fui torturado; se eles fizessem algo comigo, eu morria.


Eu tomava 18, 20 comprimidos por dia. Conversando com amigas que estudaram Farmácia na universidade, elas disseram que muito provavelmente contraí tuberculose. Não tenho meu laudo até hoje. Gostaria dele. É um direito meu”, desenvolveu Paulo.


O ex-preso político também citou a atenção que recebeu do doutor Rubens Janini, o mesmo que, a mando de Galeno, examinou o cadáver do estudante Chael. Rubens foi diretor do HCE por cerca de um ano, logo após a gestão de Galeno.

“Foi muito bem tratado pelo general Rubens, o diretor do HCE na época. O vice dele, desse comandante, era um casca grossa. Era grosseiro, valente. Às vezes, me visitava apenas para provocar. O doutor Rubens ia conversar comigo, me permitiu receber livros. Eu pedi ‘O Vermelho e o Negro’, romance que o subcomandante proibiu dizendo que era subversivo. Rubens me permitiu não só livros, como também que minha família me levasse uma televisão. Outro médico muito humano foi o ortopedista, cujo nome não me lembro. Ele me deu o melhor tratamento que pôde dar, dentro daquelas circunstâncias. Havia visivelmente uma divisão entre eles, mas acredito que a maioria dos médicos do HCE não concordavam com a repressão”, recordou Paulo.


Se, para uns, a experiência no Hospital Central do Exército inspira cuidado e atenção, para outros, a passagem pela instalação de saúde foi mais conturbada.


Filiada à organização guerrilheira Ação Nacional Libertadora, Ana Burzstyn Miranda planejava partir para um treinamento militar em Cuba quando foi reconhecida por um segurança em uma famosa loja de departamentos paulistana. Em quatro anos de encarceramento, Ana passou, entre São Paulo e Rio de Janeiro, pelos mais marcantes presídios e centros de tortura do Brasil da segunda metade do século XX como o DEOPS-SP, Oban e DOPS-RJ.


Em sua primeira passagem pelo Rio de Janeiro, Ana foi levada ao DOI-CODI. “Depois de algum tempo me levaram pro HCE, porque eu estava tremendo muito. Com o tempo, entendi que eu estava na ala psiquiátrica. Fiquei confinada em uma cela individual, muito isolada. Só via um cara berrando do lado. A gente tinha muito cuidado com os nossos companheiros quando já estavam em presídio e chegavam muito mal para conversar para eles não serem mandados para hospitais psiquiátricos. Estive no Hospital Central do Exército por uma semana totalmente dopada, tomando quatro comprimidos por dia”, contou a então presa política.


Ainda no HCE, Ana recebeu a visita dos pais. “Não sei quando, em que dia, mas abri um pouco os olhos e vi minha mãe, meu pai. Não sabia se eu estava sonhando. Mamãe tirou meu cobertor e ela me disse depois (eu não lembro) que eu estava cheia de queimaduras de cigarro e manchas roxas. Tiraram eles de perto rapidamente”, relatou.


HCE entregou ativista para a Casa da Morte de Petrópolis 

Já a ativista Inês Etienne Romeu, que esteve presa irregularmente de 5 de maio a 7 de novembro de 1871, foi encaminhada ao Hospital Central do Exército após tentar suicídio colocando-se à frente de um ônibus para escapar das torturas. De acordo com o relatório entregue pela vítima ao Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, em 1979, embora o então diretor do hospital tenha proibido seu interrogatório nas dependências do hospital, a então presa política foi liberada diretamente para os militares, cinco dias após a entrada na instituição. Nas mãos dos algozes, Inês Etienne Romeu foi levada à Casa de Petrópolis, um dos mais bárbaros centros de tortura da ditadura brasileira, do qual Inês foi a única a escapar viva.


Se, por um lado, Ana e Inês permaneceram vivas para denunciar as atrocidades pelas quais passaram, o relatório da Comissão Nacional da Verdade, no volume III, o de Mortos e Desaparecidos Políticos, constatou a morte de Manoel Alves de Oliveira e Marilena Villas Boas Pinto dentro do hospital, após tortura em outras instituições.


A luta pela memória e pela reparação 

Hoje, o Hospital Central do Exército segue operando, sem reconhecer oficialmente sua participação nos crimes da ditadura. "A política do silêncio é a política do trauma. É um espaço que ainda grita, porque guarda uma memória que o nosso país insiste em enterrar. O Brasil criou uma cultura institucional de negação da dor que ele mesmo infligiu”, denunciou Vera Vital Brasil.


Organizações como o Coletivo Memória, Verdade e Justiça e o projeto Clínicas do Testemunho tentaram resgatar essas histórias e pressionar o Estado a reconhecer sua dívida com as vítimas e seus familiares. "A tortura não desaparece simplesmente porque o tempo passa. Ela se inscreve na memória, no corpo, na sociedade. O reconhecimento e a reparação são essenciais para que a democracia se consolide", apontou a psicóloga.


Ainda segundo Vera, países como Argentina, Chile e Alemanha estão mais avançados em políticas de reparação do que o Brasil. Em território nacional, as políticas públicas de memória e reparação caminham lentamente, muitas vezes ameaçadas por contextos políticos instáveis.


"Enquanto não encararmos o papel das instituições militares durante a ditadura, continuaremos a carregar as feridas abertas de um tempo que ainda não passou completamente", finalizou Vera.


Números que não podem ser esquecidos 

● Aproximadamente 20% dos desaparecidos políticos passaram por hospitais militares.

● O Brasil reconhece oficialmente 434 mortos e desaparecidos pela repressão de Estado.

● Apenas 3 médicos militares foram formalmente responsabilizados até hoje. 

● Mais de 80% dos sobreviventes relataram envolvimento direto de profissionais de saúde nas práticas de repressão.

 
 
 

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