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Antigo prédio do DOPS vira campo de disputa entre memórias da repressão e da Polícia Civil

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    memoriasdaditadura
  • 28 de mai.
  • 5 min de leitura

Atualizado: 16 de jun.

Juventude promove ato de repúdio à ditadura em frente ao antigo prédio do DOPS, no Rio de Janeiro. Reprodução/Ocupa Dops
Juventude promove ato de repúdio à ditadura em frente ao antigo prédio do DOPS, no Rio de Janeiro. Reprodução/Ocupa Dops

Por João Gustavo Cota



Transformar o antigo prédio do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social) — um dos principais símbolos da repressão política no Brasil, em um centro de memória e resistência tem sido uma tarefa marcada por disputas e obstáculos. Localizado na Rua da Relação, no centro do Rio de Janeiro, o imóvel é alvo de um embate entre o Coletivo RJ-Memória, Verdade, Justiça e Reparação, que propõe sua conversão em um Centro de Memória dos Direitos Humanos, e a Polícia Civil, que pretende transformá-lo no Museu da Polícia. A proposta enfrenta resistências institucionais e revela as dificuldades para consolidar políticas públicas de memória sobre a ditadura e a violência de Estado.

O inquérito, que envolve disputas com a Polícia Civil, articulações com o Governo Federal e altos custos de restauração, tramita no Ministério Público Federal desde 2024. Para o ativista Felipe Nin, um dos articuladores da proposta, a criação do centro representa uma oportunidade de ressignificar o passado e educar as novas gerações sobre a história da democracia no Brasil. Ele ressalta que o prédio é um símbolo da repressão política no país ao longo do século XX e que ainda há grande desconhecimento, especialmente entre os mais jovens, sobre os acontecimentos ali ocorridos. Assim, um espaço público dedicado a contar essa história teria, segundo ele, um papel fundamental tanto pedagógico quanto simbólico.


A história do prédio

Erguido dia 5 de novembro de 1910 para ser a primeira sede da Polícia Federal no país, o edifício da Rua da Relação, no centro do Rio de Janeiro, foi projetado como um dos primeiros símbolos arquitetônicos da recém-proclamada República. Desde suas origens, serviu como centro nervoso da repressão estatal e, ao longo do século XX, tornou-se cenário de graves violações de direitos humanos. Inicialmente sede da Polícia Central, o prédio abrigou, ao longo da história, diferentes órgãos de polícia política, responsáveis pelas repressões, além de reprimir religiões de matriz africana, práticas culturais consideradas “subversivas” e movimentos sociais.

Como relembra Fernanda Pradal, professora de Direito da PUC-Rio, foi dali que partiram operações contra expressões afro-brasileiras como a capoeira e os terreiros de candomblé, ainda no período pós-abolição. Durante o Estado Novo, sob o comando de Filinto Müller, o prédio foi palco de perseguições a opositores como Luiz Carlos Prestes e Olga Benário. Já na ditadura militar, o DOPS teve papel central na rede repressiva, promovendo prisões, torturas e interrogatórios, frequentemente com a colaboração de órgãos como o DOI-CODI e as Forças Armadas. “Esse prédio, que primeiro é o prédio da Polícia Central e depois é o prédio do DOPS, é muito simbólico de muitas formas de violência ao longo da história”, destaca Fernanda Pradal. “É um lugar que representa várias camadas de repressão e controle do Estado sobre a população.”


As memórias de quem sofreu a repressão

Felipe Nin, arquiteto e sobrinho de Raul Amaro Nin Ferreira — estudante assassinado pela repressão em 1971 —, deu um depoimento emocionado sobre como a história pessoal de sua família se entrelaça com o prédio do DOPS. Raul foi preso, interrogado e torturado no local antes de ser levado ao DOI-CODI e, finalmente, ao Hospital Central do Exército, onde faleceu após novas sessões de tortura.

A documentação que ajudou a reconstruir a trajetória de Raul, em parte, foi resgatada dos arquivos que originalmente pertenciam ao DOPS. Esses documentos — hoje preservados no Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (APERJ) — são cruciais para os processos de reparação histórica e servem como testemunho das violações sistemáticas de direitos humanos promovidas pelo Estado brasileiro​​, disse Felipe.


Os planos para o centro de memória

Inspirados por experiências internacionais de preservação da memória, como a ESMA, na Argentina, e o Topografia do Terror, em Berlim, movimentos como o Grupo Tortura Nunca Mais e o Coletivo Memória, Verdade, Justiça e Reparação propõem transformar o antigo DOPS em um Centro de Memória e Direitos Humanos. O objetivo não é apenas recordar a ditadura, mas também contar toda a longa história de violência de Estado no Brasil, incluindo a repressão às religiões de matriz africana e as práticas racistas institucionalizadas. O espaço, segundo Fernanda Pradal, teria funções educativas, culturais e artísticas, promovendo debates sobre cidadania, democracia e memória, além de prestar homenagens às vítimas de diferentes períodos de repressão.

A proposta para o centro é ambiciosa e visa a abrigar exposições permanentes e temporárias, uma biblioteca de direitos humanos, cursos, atividades educativas e atendimento psicológico às vítimas e seus familiares. "Queremos que o espaço funcione como lugar de múltiplas atividades: pesquisa, educação, acolhimento e denúncia", resume Felipe Nin. “Um espaço pedagógico que ajude a entender a luta pela democracia e os efeitos da violência institucional ainda presentes.” Além disso, o centro deve oferecer acesso digital a arquivos históricos e acolher instituições públicas, como o Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura. O objetivo é que o espaço não apenas preserve a memória, mas também atue ativamente na defesa dos direitos humanos no presente.


As barreiras para o projeto

A principal barreira enfrentada pelo coletivo na criação do Centro de Memória e Direitos Humanos é a disputa com a Polícia Civil, que reivindica o uso do imóvel para abrigar o Museu da Polícia. Embora o prédio pertença ao Governo Federal, ele foi cedido à Polícia Civil nos anos 1960, e a reversão dessa cessão é um dos pontos centrais da disputa. Desde os anos 2000, a Polícia Civil tem se oposto fortemente à cessão do prédio para fins memorialísticos, argumentando que o imóvel representa a história da instituição e que deveria continuar sob seu domínio, funcionando como um museu da Polícia.

Essa disputa, no entanto, não se resume apenas a quem ocupará o prédio, mas também a qual memória será reconhecida como oficial. Movimentos sociais defendem que não é possível celebrar a história policial sem reconhecer o papel da instituição nas graves violações de direitos humanos que ocorreram ali. Já a Polícia Civil sustenta uma narrativa de continuidade histórica, afirmando que o prédio faz parte de sua memória institucional e, portanto, deveria ser preservado como tal, minimizando os crimes ali perpetrados.

Além disso, o projeto enfrenta outro obstáculo significativo: o custo da restauração do edifício. Segundo Felipe Nin, a obra está orçada em cerca de R$80 milhões, com mais R$4,5 milhões destinados exclusivamente aos projetos de museologia. Outro ponto a ser definido é qual instituição pública será responsável pela implementação e manutenção do centro. "Existe um desafio em desenhar o modelo institucional adequado", explica Nin. “É um projeto de grande porte, que precisa de base legal, política e financeira sólida.” 

A Polícia Civil do Rio de Janeiro foi procurada, mas não se posicionou sobre o assunto.


A tramitação no Ministério Público

A mobilização do coletivo levou à abertura de um inquérito no Ministério Público Federal em 2024. Desde então, uma série de reuniões têm sido realizadas entre o MP, o Ministério dos Direitos Humanos e a Secretaria de Patrimônio da União (SPU). Descobriu-se que o prédio ainda é formalmente da União, o que abre caminho para sua retomada. O projeto também conta com o apoio do Ministério da Cultura e articulações com o Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e o Instituto Estadual do Patrimônio Cultural (INEPAC), que acompanham o processo de tombamento e avaliação técnica do edifício.



 
 
 

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